Em tempo de arrumações
CASA ARRUMADA
Casa arrumada é assim:
Um lugar organizado, limpo, com espaço livre pra circulação e uma boa
entrada de luz.
Mas casa, pra mim, tem que ser casa e não um centro cirúrgico, um
cenário de novela.
Tem gente que gasta muito tempo limpando, esterilizando, ajeitando os
móveis, afofando as almofadas…
Não, eu prefiro viver numa casa onde eu bato o olho e percebo logo:
Aqui tem vida…
Casa com vida, pra mim, é aquela em que os livros saem das prateleiras
e os enfeites brincam de trocar de lugar.
Casa com vida tem fogão gasto pelo uso, pelo abuso das refeições
fartas, que chamam todo mundo pra mesa da cozinha.
Sofá sem mancha?
Tapete sem fio puxado?
Mesa sem marca de copo?
Tá na cara que é casa sem festa.
E se o piso não tem arranhão, é porque ali ninguém dança.
Casa com vida, pra mim, tem banheiro com vapor perfumado no meio da tarde.
Tem gaveta de entulho, daquelas que a gente guarda barbante,
passaporte e vela de aniversário, tudo junto…
Casa com vida é aquela em que a gente entra e se sente bem-vinda.
A que está sempre pronta pros amigos, filhos…
Netos, pros vizinhos…
E nos quartos, se possível, tem lençóis revirados por gente que brinca
ou namora a qualquer hora do dia.
Casa com vida é aquela que a gente arruma pra ficar com a cara da gente.
Arrume a sua casa todos os dias…
Mas arrume de um jeito que lhe sobre tempo pra viver nela…
E reconhecer nela o seu lugar.
Carlos Drummond de Andrade (1902-1987)
O segredo do amor
Não precisar do outro.
Por estranho que pareça, em mais de vinte anos de consulta, as pessoas que conheci que mais felizes foram não precisavam do outro. Talvez não tão estranho. Seja uma relação de semanas seja a de uma vida, o amor, a mistura certa de sexo, companhia, confiança e riso, é tanto melhor quanto mais independente. De tudo.
Se o outro está lá para nos resolver abandonos anteriores, inseguranças várias, neuras, políticas de controlo ( posse e ciúme), precisamos dele. Torna-se um artefacto, o amuleto sem o qual a vida não faz sentido,uma tenebrosa confissão de impotência.
Se, no entanto, o outro faz parte do nosso gosto pela vida, torna-se, ipso facto, parte de nós. Em momento nenhum o desmentiremos, nunca diremos que a vida não faz sentido sem ele. Nenhuma parte da nossa vida se sobrepõe ao todo, não nos cabe decidir sobre o que tem existência própria.
É por isso que o amor é eterno.